O
Almanaque Borda d’Água é, talvez, a mais antiga publicação do género em
Portugal. Anualmente são vendidos milhares de exemplares aos agricultores e
demais interessados de todo o país, que religiosamente o seguem. «Nunca falha»,
afirmam alguns dos seus leitores.
Certo dia perguntaram ao poeta leiriense
Afonso Lopes Vieira qual era o seu livro de cabeceira. Com o humor que lhe era
reconhecido respondeu: «O Almanaque Borda d’Água».
Tal era a fama desta publicação, lida e
desejada por letrados, agricultores e demais interessados em saber as luas, as
marés ou outras importantes informações agrícolas e meteorológicas, que ao
longo dos anos o Almanaque Borda d’Água
almejou que hoje é difícil conseguir definir qual a data da sua primeira edição.
Perde-se nos tempos e na memória.
O exemplar mais antigo que tive
oportunidade de consultar é do ano de 1851, impresso em Coimbra pela Imprensa
da Universidade e propriedade da viúva de Lourenço João Bernardo. Nesse tempo
já ele era apelidado de «o verdadeiro e mais antigo Borda d’Agua», mas com
outro nome à cabeça: «Lunario, Prognostico e Diario» (edição de 1858), escrito
por «Antonio de Sousa, astronomo lusitano, um maltez da Borda d’Água e Beira» e
considerada uma «obra utilissima, segundo as regras astronomicas, aos
lavradores, pescadores, pomareiros, hortelões, jardineiros e caçadores». Ainda
no frontispício uma quadra alertava os leitores para a veracidade da
publicação:
«Acautelae-vos, Freguezes,
De quem vos quer enganar;
Só eu sou o verdadeiro,
O Borda d’Agua sem par».
Tais indicações pressupõem que a
publicação era muito anterior à data de 1851. Como era um folheto que muito se
vendia, bastas também foram as edições fraudulentas que se editaram, estando o
verdadeiro editor alerta e avisando os seus fregueses.
Vendia-se, naqueles tempos, na Rua das
Fangas, em Coimbra, na loja da viúva de Lourenço João Bernardo, onde também se
vendiam «livros, novellas, tragedias de todas as qualidades, comedias entremezes,
e historias curiosas», em
Braga, Lamego, Mangualde, Trancoso, Viseu, aos cuidados do
«cego Bonifacio José dos Sanctos», em Aveiro «e em todas as feiras, aonde elle
se achar». E assim foi durante muito e muitos anos, disseminando-se por todo o Portugal, de lés a lés.
Com o passar dos anos o Almanaque Borda d’Água foi sofrendo
alterações, tanto a nível gráfico, tamanho e qualidade de papel, como de
boneco, característica essa que bem o identificava perante os leitores, muitos
deles analfabetos, que o davam a ler a quem soubesse, para que lhes dessem
conta das informações nele contidas.
Até aos anos sessenta, pelo menos,
continuou a ser publicado em Coimbra, sendo nesta temporada pertença de Manuel
Teixeira, primeiro, e depois sua filha, Deolinda Teixeira, que continuou a
publicar o Borda d’Água.
Numa edição para o ano de 1940 surge já
como «Repertório», designado como o «mais antigo e mais acreditado». Também no
seu frontispício se inserem duas estrofes versejadas, uma delas carregada com
um teor nacionalista, bem ao jeito da época:
«Tenho honra em ter nascido
Neste belo Portugal.
Dele já fala o mundo inteiro
Por ter progresso e dinheiro
E um Govêrno sem igual.»
Pouco tempo depois, conta-se, não há
provas concretas, terá existido uma edição do Almanaque Borda d’Água que foi apreendida pela PIDE e os seus
editores a braços com uma série de problemas. O problema teria sido causado pelas
citações de carácter generalista, que habitualmente compunham as páginas, terem
sido trocadas por citações de Lenine, Marx e Engels. Contam os editores que
desconheciam essas mesmas frases, outros apontam os tipógrafos como os autores
do acto revolucionário. A edição ficou suspensa, mas desde há alguns anos a
esta parte, novamente começou a ser publicado, desta feita em Lisboa, como Borda d’Água – O Verdadeiro Almanaque,
Reportório útil a toda a gente.
E foi, durante muito tempo, o governo da casa e de muitas famílias,
principalmente de agricultores, que por ele se guiavam para as sementeiras,
enxertias e podas, entre outros úteis e importantes conselhos.
Para muitos, comprar o Almanaque Borda d’Água era uma
verdadeira tradição de família, pois sempre um exemplar existia em casa ou já o
pai comprava todos os anos. Disso dá conta o prólogo, na edição do ano 1940, em
que diz: «E é tão grande o conceito de que gosa esta acreditada folhinha, tão
afamada a sua orientação e a veracidade das suas informações, que raras são as
famílias portuguêsas que se dispensam de possuir êste Borda d’Agua, o mais
barato de quantos se publicam em Portugal.»
No entanto, o Almanaque Borda d’Água não era só utilizado para consulta. Em
tempos mais remotos, quando os calendários não existiam com a profusão dos dias
de hoje, certas famílias usavam-no como registo e diário de vários factos e
acontecimentos, principalmente, ligados à família, como o falecimento ou
nascimento de um parente. De geração para geração se transmitia o passado e o
registo familiar.
Obs:
este texto é uma versão melhorada e reduzida, de um artigo publicado originalmente
no Jornal de Leiria,
suplemento Viver, em 2001.
Paulo Moreiras