19.1.22

O Caminho do Burro no Jornal de Letras

 


Exuberância lexical


Paulo Moreiras, autor de A Demanda de D. Fuas Bragatela (2002), o melhor romance pícaro publicado este século em Portugal, de Os Dias de Saturno (2009) e de O Ouro dos Corcundas (2011), regressa à narrativa com O Caminho do Burro, um volume com 14 contos publicados em revistas entre 1996 e 2017. 


O autor explica título tão singular: “... os antigos, quando pretendiam abrir um novo caminho pela montanha (...) recorriam às habilidades de um burro. A partir do ponto de origem para um novo caminho soltavam o burro e deixavam que ele seguisse o trilho à vontade, sem limitações, com os homens na sua peugada a fazer a marcação do traçado (...). Tal como o burro assim eu fiz o meu caminho, percorrendo as sendas, descobrindo as veredas, galgando os valados (...) na composição destas prosas”.


Isto é, escritos ao longo de um dilatado período, sem motivação única, os contos evidenciam uma ampla diversidade temática (uns urbanos, outros de inspiração rural; uns tematizando a solidão e o sexo, outro a vida conventual), unidos, porém, pelo singular registo de escrita do autor, abundantemente presente nos seus três romances: a exuberância lexical. 


O grau crescente de dificuldade na estruturação de um conto força cada autor a buscar uma singularidade estilística ou temática. Não basta já contar uma história, como se não tivesse havido evolução do conto desde oitocentos, quando o conto popular se separou do conto erudito, assumindo este o estatuto de um romance breve, concentrando em poucas páginas todas as categorias narrativas (cf. Nuno Júdice, O fenómeno narrativo. Do conto popular à ficção contemporânea, 2005). Esta fora a grande proeza dos escritores do século XIX e da primeira metade do seguinte, e por ela se media a excelência do escritor. Neste sentido, Alexandre Herculano e Eça de Queirós foram e são inexcedíveis. 


Hoje, as categorias que regem o conto são diferentes, vigora mais a sugestão do que a descrição (o microconto, por exemplo), as modalidades do registo da categoria de tempo tornaram-se múltiplas, até pela pressão da concorrência dos audiovisuais, da publicidade, do documentário, da reportagem jornalística e da abundante prática do conto infantil, bem como do trabalho sobre os graus de intensidade psicológica das personagens. Em síntese, a arte do conto tornou-se, hoje, uma das mais difíceis do campo narrativo. É mais fácil ser-se um bom romancista do que um bom contista, já que este exige uma originalidade e uma singularidade não acessível a todos os escritores. 


Paulo Moreiras (PM) encontrou a sua singularidade de contista, não através do foco psicológico, não por via de um original trabalho sobre o tempo, não através de uma espécie de cripto-mensagem para o leitor, não através do cruzamento com a literatura policial ou científica, mas, sim, através de uma fortíssima exuberância lexical, que, porém, nunca cai na eloquência oca. 


Exuberância lexical significa, aqui, (i) a recuperação de vocábulos perdidos no uso corrente da língua e da escrita, (ii) a reintegração de termos vernaculares do interior do país, (iii) de camadas perdidas da língua constantes da oralidade popular, (iv) de criatividade na formação de palavras (por exemplo: o nome próprio da editora, “visgarolho”, como aglutinação de “vesgo” e de “zarolho”), (v) na utilização de antigas metáforas ou imagens de tradição oral caídas em desuso. 


A verdade é que hoje, em geral, o léxico do romance português foi invadido por uma pobreza franciscana e que ler um conto de PM constitui uma alegria para o espírito de uma língua portuguesa ainda viva, vibrante, cheia de encantamento, ocultando mil segredos que emergem espontaneamente, encantando o leitor. 


Sem dúvida que, face ao espartanismo da prática da língua no romance, a exuberância lexical de PM, afim da de alguns dos contos de Mário de Carvalho, corre o risco de ser considerada barroca, um barroquismo anacrónico em época de simplicidade vocabular. 


Leia-se qualquer conto, mas sobretudo os decorridos em mosteiros e os com personagens no ou provindas do interior de Portugal, nomeadamente Ars Amatoria (a invasão do Mosteiro da Batalha por ratos), Doces e paixões de Calistra, uma competição entre dois mosteiros na confeção de sobremesas, A pedra do Diabo e o espantoso Benedito Quaresma (talvez o melhor conto), A perdição de Sebastião das Canas, O tambor de Albano Marmelo... 


Não podemos deixar de aproximar O Caminho do Burro de O País do Solidó, de Rentes de Carvalho, ora publicado. Em ambos a mesma exuberância lexical, retrato linguístico e ideológico de um país que vai desaparecendo, substituído pelas palavras e costumes de um país urbano linguisticamente menor, o qual, inevitavelmente — já nada se pode fazer, tal a força avassaladora do novo século — legaremos aos nossos filhos e netos. Resta-nos a suprema alegria estética de ler Paulo Moreiras e Rentes de Carvalho. 


Miguel Real, Jornal de LetrasAno XLI, Número 1338, De 12 a 25 de janeiro de 2022