Polémico, combativo, saudosista,
orgulhoso, são alguns dos predicados que podemos atribuir a Virgílio Nogueiro
Gomes, reputado gastrónomo e acérrimo defensor da cozinha regional portuguesa,
seja através das suas intervenções públicas, em artigos de jornal ou nas
crónicas publicadas no sítio que mantém na internet. Algumas dessas crónicas
foram agora vertidas em livro, «Transmontanices - Causas de Comer» (Edições do
Gosto, 2010), compreendendo um arco cronológico que se estende de Fevereiro de
2000 até Julho de 2010 e um território preciso: Trás-os-Montes. Uma década de
combate pela educação do gosto e, principalmente, pela preservação das nossas
tradições culinárias e todas as suas idiossincrasias, algumas das vezes, em
choque com as novas variáveis introduzidas pelo progresso. «Prefiro descrever
as cozinhas regionais que, isso sim, o seu conjunto constitui o património
culinário português», defende o autor.
Natural de Bragança, Virgílio
Nogueiro Gomes começa por afirmar que não é fácil estabelecer as fronteiras da
chamada cozinha regional, remetendo as suas reflexões culinárias para uma
geografia que envolve os distritos de Bragança e Vila Real, em conformidade com
a divisão administrativa estabelecida para a província de Trás-os-Montes.
Outras dificuldades são apontadas, como a questão da «designação à transmontana enquanto identificadora
de um prato e da região». De acordo com o autor, podem ser consideradas, dentro
desta região, três grandes sub-regiões: Terra Fria, Terra Quente e as arribas
do Douro. Numa tentativa de caracterizar a culinária regional, o autor indica
as influências provocadas pelos trabalhadores que, ciclicamente, foram ocupando
ou passaram pelo território transmontano, deixando os seus hábitos e os seus
ingredientes como testemunho. Naturalmente, a «evolução dos hábitos alimentares
nesta região foi acontecendo lentamente, mas com cuidado», adverte Virgílio
Nogueiro Gomes, o que permitiu criar uma região «rica em produtos, confecções
simples e mesa farta».
Salteando e apimentando as suas
crónicas com nótulas históricas e episódios caricatos, o autor vai tecendo várias
considerações sobre os tradicionais pratos à transmontana, num périplo pelo
receituário português desde os tempos de Domingos Rodrigues, cozinheiro da
corte de D. Pedro II e autor do primeiro livro de cozinha editado em Portugal,
«Arte de Cozinha» (1680), até ao livro «Cozinha Tradicional Portuguesa» (1982),
inventário rigoroso da autoria de Maria de Lourdes Modesto, sem esquecer os
contributos de Lucas Rigaud (1780), João da Mata (1876), Carlos Bento da Maia
(1904) ou Olleboma (1936), entre muitos outros. Um verdadeiro cardápio
transmontano, cheio de história e sabor.
Alguns dos rituais associados à
cozinha, ainda em voga em algumas casas, também são descritos pelo autor, como
é o caso da matança do porco, detalhadamente relatada, num primoroso registo
etno-antropológico: «Nunca se marcava a matança em período de Lua em quarto
minguante, para evitar que a carne minguasse ao ser cozinhada»; e a subsequente
confecção dos tradicionais enchidos transmontanos: chouriços de verde e doces,
azedos, enchidos de pão, alheiras, butelos, linguiças e salpicões, sem esquecer
os presuntos. Associados a estes rituais existiam também práticas culinárias
muito próprias: «Num dos dias mais aliviados ou no dia de encher os "butelos",
comia-se o famoso "guisado de ossinhos", ao qual se adicionava a mioleira
batida com ovos».
Uma das guerras mais fervorosas
travada por Virgílio Nogueiro Gomes, e bastamente enunciada ao longo do livro,
é sobre a questão das alheiras, que nem de propósito acabaram de ser eleitas
como umas das sete maravilhas da gastronomia portuguesa. Para o autor, existem
muitas adulterações seja à sua produção, seja à sua confecção, tal como afirma:
«Uma coisa é evoluir, outra é adulterar». No cerne da questão estão as
designadas alheiras de bacalhau e alheiras vegetarianas, que tanta celeuma
provocou ao autor, que defende que tais produtos deveriam ser chamados de
enchido de bacalhau e enchido vegetariano. «Por favor, chamem o que quiserem a
estes produtos mas não lhe chamem alheira», insurge-se o autor, afirmando que o
que está em causa não é o produto, mas apenas a sua designação. Uma luta que
vinca fortemente as causas culinárias com as quais Virgílio Nogueiro Gomes se
bate e galhardamente, para nosso bem.
Como curiosidade, durante o Estado
Novo, por ordem de António Ferro, no primeiro regulamento de concessão das
Pousadas de Portugal, em 1939, os seus restaurantes deveriam, obrigatoriamente,
servir receituário regional de acordo com a sua respectiva localização. Pena
foi que o autor não tivesse desenvolvido mais esta questão.
Para
finalizar, usamos as palavras de Inês Pedrosa, que assina o prefácio da obra: «De
qualquer modo, com um livro assim, não há que temer pela degenerescência do
paladar português.»
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Transmontanices - Causas de Comer
Virgílio Nogueiro Gomes
Edições do Gosto
172 páginas