24.10.13

Os "Bingadores"




No dia em que se assinala o lançamento mundial da nova aventura de Astérix e Obélix, intitulada Astérix entre os Pictos (Edições Asa), desta vez assinada por Didier Conrad (desenho) e Jean-Yves Ferri (argumento), não queria deixar de recordar uma curiosidade sobre o genial criador da dupla de heróis gauleses, René Goscinny (1926-1977), um dos maiores e prolíficos argumentistas de banda desenhada do mundo.

Poucos saberão que, em toda a sua vasta obra, Goscinny apenas deixou um único romance publicado, Tous le visiteurs à terre (Denöel, 1969), sobre as aventuras e desventuras de várias pessoas a bordo de um paquete de luxo, demonstrando assim a sua paixão por paquetes, onde aliás, durante uma viagem, veio a conhecer a sua futura esposa.

Em Portugal, o romance de Goscinny foi publicado em 1972, sob a chancela da Lello & Irmão Editores, com o inusitado título de Os "Bingadores", numa tradução de J. Couto Borges. O próprio tradutor, em explicação preliminar, tenta esclarecer a sua opção, tendo em conta que a «versão literal não era de considerar». A solução encontrada foi Os "Bingadores", «numa clara alusão ao nome duma série que obteve (…) bastante êxito na TV» — Os Vingadores — e porque o jogo do bingo «constitui tradicionalmente uma das distrações quotidianas na vida de bordo, em todos os navios de passageiros de todos os países». A esse jogo, Goscinny dedica o capítulo nove, justamente com o título Bingo!

Escrito num tom satírico e recheado de humor e ironia, René Goscinny encerra num paquete de luxo uma galeria de personagens, descrevendo as suas fobias e manias, em que a pouco e pouco vamos ficando a conhecer a sua vida a bordo e as relações sociais que se vão estabelecendo durante a viagem. Como referido na contracapa, «veremos que, no decurso duma viagem, o mais luxuoso paquete se transforma depressa numa pensão familiar, com as suas preocupaçõezinhas mesquinhas, as suas maledicências, os seus jogos obsoletos, as suas festas sem originalidade, as suas cansativas excursões em terra». É curioso verificar que o gosto particular de Goscinny por navios também se encontra patente nas aventuras de Astérix e Obélix, nas suas viagens e nos fatídicos encontros com os piratas.

Se tiver oportunidade de encontrar um exemplar pelos alfarrabistas, embarque também o leitor e delicie-se nesta viagem, mas não se esqueça, como aconselha o autor: «estar nas boas graças do chefe garante uma boa mesa na sala de jantar».


Obs.: Em França, Tous le visiteurs à terre conheceu mais duas edições; uma em 1997 (Actes Sud) e outra, profusamente ilustrada, em 2010 (IMAV Editions).



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René Goscinny
Os "Bingadores"
Lello & Irmão Editores
188 páginas

22.10.13

Transmontanices - Causas de Comer


Polémico, combativo, saudosista, orgulhoso, são alguns dos predicados que podemos atribuir a Virgílio Nogueiro Gomes, reputado gastrónomo e acérrimo defensor da cozinha regional portuguesa, seja através das suas intervenções públicas, em artigos de jornal ou nas crónicas publicadas no sítio que mantém na internet. Algumas dessas crónicas foram agora vertidas em livro, «Transmontanices - Causas de Comer» (Edições do Gosto, 2010), compreendendo um arco cronológico que se estende de Fevereiro de 2000 até Julho de 2010 e um território preciso: Trás-os-Montes. Uma década de combate pela educação do gosto e, principalmente, pela preservação das nossas tradições culinárias e todas as suas idiossincrasias, algumas das vezes, em choque com as novas variáveis introduzidas pelo progresso. «Prefiro descrever as cozinhas regionais que, isso sim, o seu conjunto constitui o património culinário português», defende o autor.

Natural de Bragança, Virgílio Nogueiro Gomes começa por afirmar que não é fácil estabelecer as fronteiras da chamada cozinha regional, remetendo as suas reflexões culinárias para uma geografia que envolve os distritos de Bragança e Vila Real, em conformidade com a divisão administrativa estabelecida para a província de Trás-os-Montes. Outras dificuldades são apontadas, como a questão da «designação à transmontana enquanto identificadora de um prato e da região». De acordo com o autor, podem ser consideradas, dentro desta região, três grandes sub-regiões: Terra Fria, Terra Quente e as arribas do Douro. Numa tentativa de caracterizar a culinária regional, o autor indica as influências provocadas pelos trabalhadores que, ciclicamente, foram ocupando ou passaram pelo território transmontano, deixando os seus hábitos e os seus ingredientes como testemunho. Naturalmente, a «evolução dos hábitos alimentares nesta região foi acontecendo lentamente, mas com cuidado», adverte Virgílio Nogueiro Gomes, o que permitiu criar uma região «rica em produtos, confecções simples e mesa farta».

Salteando e apimentando as suas crónicas com nótulas históricas e episódios caricatos, o autor vai tecendo várias considerações sobre os tradicionais pratos à transmontana, num périplo pelo receituário português desde os tempos de Domingos Rodrigues, cozinheiro da corte de D. Pedro II e autor do primeiro livro de cozinha editado em Portugal, «Arte de Cozinha» (1680), até ao livro «Cozinha Tradicional Portuguesa» (1982), inventário rigoroso da autoria de Maria de Lourdes Modesto, sem esquecer os contributos de Lucas Rigaud (1780), João da Mata (1876), Carlos Bento da Maia (1904) ou Olleboma (1936), entre muitos outros. Um verdadeiro cardápio transmontano, cheio de história e sabor.

Alguns dos rituais associados à cozinha, ainda em voga em algumas casas, também são descritos pelo autor, como é o caso da matança do porco, detalhadamente relatada, num primoroso registo etno-antropológico: «Nunca se marcava a matança em período de Lua em quarto minguante, para evitar que a carne minguasse ao ser cozinhada»; e a subsequente confecção dos tradicionais enchidos transmontanos: chouriços de verde e doces, azedos, enchidos de pão, alheiras, butelos, linguiças e salpicões, sem esquecer os presuntos. Associados a estes rituais existiam também práticas culinárias muito próprias: «Num dos dias mais aliviados ou no dia de encher os "butelos", comia-se o famoso "guisado de ossinhos", ao qual se adicionava a mioleira batida com ovos».

Uma das guerras mais fervorosas travada por Virgílio Nogueiro Gomes, e bastamente enunciada ao longo do livro, é sobre a questão das alheiras, que nem de propósito acabaram de ser eleitas como umas das sete maravilhas da gastronomia portuguesa. Para o autor, existem muitas adulterações seja à sua produção, seja à sua confecção, tal como afirma: «Uma coisa é evoluir, outra é adulterar». No cerne da questão estão as designadas alheiras de bacalhau e alheiras vegetarianas, que tanta celeuma provocou ao autor, que defende que tais produtos deveriam ser chamados de enchido de bacalhau e enchido vegetariano. «Por favor, chamem o que quiserem a estes produtos mas não lhe chamem alheira», insurge-se o autor, afirmando que o que está em causa não é o produto, mas apenas a sua designação. Uma luta que vinca fortemente as causas culinárias com as quais Virgílio Nogueiro Gomes se bate e galhardamente, para nosso bem.

Como curiosidade, durante o Estado Novo, por ordem de António Ferro, no primeiro regulamento de concessão das Pousadas de Portugal, em 1939, os seus restaurantes deveriam, obrigatoriamente, servir receituário regional de acordo com a sua respectiva localização. Pena foi que o autor não tivesse desenvolvido mais esta questão.

Para finalizar, usamos as palavras de Inês Pedrosa, que assina o prefácio da obra: «De qualquer modo, com um livro assim, não há que temer pela degenerescência do paladar português.»



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Transmontanices - Causas de Comer
Virgílio Nogueiro Gomes
Edições do Gosto
172 páginas

10.10.13

«Caril e Outras Receitas Amorosas»

No próximo sábado, pelas 19h00, estarei no Restaurante Tendinha, em Mem Martins, para apresentar um livro de contos-gastronómicos da autoria de Fausto Marsol intitulado «Caril e Outras Receitas Amorosas».



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